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quarta-feira, setembro 26, 2007

Penado


Inferno é uma palavra inspiradora. Pode nos dar
a idéia de uma imensa bagunça, desordem, onde
pessoas fazem o que querem inconseqüentemente e
se jogam sem medo, se machucando e ao mesmo tempo
rindo histericamente de suas energumenices. O
inferno pode ser a podridão, o sofrimento e a
lástima infindável de mágoas, carências,
arrependimentos e complexos de inferioridade,
essa mistura amarga que queima nossas entranhas
nos tornando seres afastados, abomináveis,
deturpados. Então, dizer que o inferno é algo
bom, apenas bom, é infundado, é insensato, o
inferno é uma mistura de sensações que nada têm a
ver com alívio e segurança, é sempre o frio na
barriga, a adrenalina, os dois gumes da faca e o
peso na consciência, ou pior, a perda dela.


O purgatório é um caminho, um caminho que pode
nos levar a rotas saudáveis, a rotas
ridiculamente horizontais pelas quais poderemos
caminhar sempre olhando pra trás e vendo o que
restou de nossos passos. Rota árdua, geralmente
passamos por ela descalços, em sol escaldante e
em terra seca, muitas pedras, muitos vendedores
ambulantes fazendo nossas cabeças, porém também
muitas promessas esperançosas de um fim de
itinerário gratificante, onde exista um gramado
fofo, com uma toalha felpuda e uma taça de vinho
gelado à sombra de uma macieira sem serpente.
Talvez, dependendo do sujeito, o fim da rota
purgatória pode não ser tão bucólica assim,
talvez alguém almeje uma festa, com grande luzes
cintilantes, com grande satisfação, risadas e
anedotas, abraços e carinhos numa noite
enluarada... Talvez o purgatório seja
simplesmente o ato de viver sem pestanejar diante
calúnias, brigas e pessimismo, talvez poucos
tenham noção de como enfrentar tal caminho,
preferindo as artimanhas aparentemente fáceis do
inferno.

Já o céu não é tão linear, se aparenta muito com
o inferno, pois no meio de um inferno pode haver
um tiquinho de céu, tudo depende dos olhos do
fulano, tudo depende da maneira como alguém
conhece um perfume no meio de uma nuvem de fumaça
negra.... A percepção é fundamental para se
chegar ao céu... Ver através de uma ventania a
beleza do movimento da natureza, que sim, é
perfeita e não depende nem de céu, purgatório ou
inferno... O céu pode durar um segundo e se
esvair, pode durar um minuto, no sofá da sala de
estar no colo da mãe... Pode durar duas ou três
horas numa conversa de butequim, entre amigos, no
meio de tantas possibilidades de inferno, o céu
pode ser a visita de um amigo quando se está
doente, o céu não é uma constante, é uma
seqüência nada aritmética que aparece quando
damos um tempo pra nós mesmo, quando usamos
nossos sentidos para perceber o óbvio do mundo,
que é viver... O inferno a gente inventa pois é
mais fácil, todos nos oferecem o inferno, o
mercado de trabalho, os falsos amigos, os
vizinhos fofoqueiros e a mídia escandalosa... Já
vi em algum lugar - o céu é para poucos... e é
muito mais que isso, é a verdade, é a essência
inexplicável dos filósofos, é a mais perfeita
geometria do caos, são as reticências que suprem
a falta de palavras.

Mas tudo não se resume a inferno, purgatório e
céu, que são três palavras que pra mim definem
uma outra - viver - e viver pode significar
trilhões de outras palavras, talvez quatrilhões,
e palavras que ainda vão surgir, ou gestos que
estão por aparecer. Aparecer apenas pra nós,
humanos, pois tudo já existe e somos nós, com
nossos instrumentos - instinto, comunicação,
medo, indagação, etecéteras - que vamos tentando
dar um porém a tudo, vamos querendo transformar
uma pedra num santo milagreiro, vamos unindo
chips e linhas para criar um universo virtual, e
assim vamos, e vamos, mas o mundo fica intacto,
por mais que nele cutuquemos e moldemos, ele não
muda, somos nós que achamos que ele pareça
mudar... Nós somos eles, nós escrevemos, atuamos,
dirigimos, matamos e trabalhamos e o mundo
continua, na sua, esnobe, mudo, sem precisar
fazer nada disso, apenas existir, sem a mínima
necessidade de céu, inferno e purgatório... Deus
não precisa de céu, inferno nem purgatório nem
tampouco os criou, Deus nada criou, Deus é e não
adianta questionar, tecer, moldar, discutir,
embebedar, nossa criação humana, o tempo, vai
passar e vamos ser obrigados a sermos escravos
vivos, mudos ou mortos de sermos mundo e sermos
do mundo, sempre...

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